Uma parábola sobre o cinema em "A origem"
"A origem" (Inception) é um filme de 2010, mas até hoje, onze anos após o seu lançamento, ainda gera teorias e desperta grandes reflexões nos espectadores, angariando cada vez mais fãs. Um projeto ambicioso do diretor Christopher Nolan, que foi planejado, pensado, preparado por quase dez anos e hoje pode ser considerado um verdadeiro clássico dessa geração. Um filme desse porte, tão bem elaborado, logicamente guarda profundas questões que podem ser destrinchadas para a nossa reflexão e por muito tempo ainda.
Com a descrição do seu enredo principal já dá pra imaginar o quão complexo é esse filme. Uma verdadeira joia rara do cinema de autor em meio ao mar de "genéricos" de Hollywood.
O que vai ser dito nesse humilde texto está longe de ser uma reflexão original. Apenas um acréscimo de algumas considerações as muitas análises já feitas especificamente sobre esse tema. Algumas dessas análises estarão nas nossas referências caso você queira saber um pouco mais sobre.
Antecedentes
Christopher Nolan já vinha em larga ascensão desde o seu primeiro filme em Hollywood, "Amnésia" (Memento, 2000). Antes disse ele tinha produzido um filme com alguns amigos, quase de forma caseira, chamado Following (1998). Ambos chamam atenção por conta de sua peculiar maneira de contar a história de forma fragmentada e não cronológica. Se em "Insônia" (Insomnia) de 2002, o diretor lança o seu projeto menos autoral e mais fraco (que de forma alguma é ruim, ao contrário, um bom filme, mas nada além disso), em "Batman Begins" (2005) se firmou de vez no mainstream do cinema. Daí pra frente seus filmes foram solidificando sua carreira. "O grande truque" (The Prestige, 2006) foi um sucesso impactante e já trata em suas entrelinhas do mesmo tema que "A origem". Em 2008, Nolan nos presenteou com "Batman - O cavaleiro das trevas" (The Dark Knight), considerado por muitos como o melhor filme de super-heróis da história e o melhor da carreira do diretor.
Temáticas e Enredo
O tema mais explicito e superficial de "A origem" é a espionagem industrial. Mas a simplicidade para por aí, pois essa espionagem acontece de uma forma peculiar, uma vez que os segredos que se buscam são extraídos diretamente da mente de uma pessoa enquanto ela dorme. Indo para uma camada um pouco mais profunda, percebemos que o tema que realmente move a trama é o relacionamento entre pai e filhos.
Por conta de uma tragédia com sua amada esposa, Mal (Marion Cottilard), Dom Cobb (DiCaprio) precisou abandonar os filhos e se exilar, uma vez que não tinha como provar que não era o responsável pela morte dela. Após fracassar na missão de extrair informações do poderoso empresário Saito (Ken Watanabe), este propõe a Cobb um perigoso trabalho e, como recompensa caso seja bem sucedido, a chance de voltar para os filhos, livre das acusações que pesam contra ele. Apesar do amigo e colega de trabalho, Arthut (Joseph Gordon-Levitt) afirmar que não é possível fazer o que Saito quer, Cobb aceita a proposta e começa a montar uma nova equipe para inserir uma ideia na mente de Robert Fischer (Cillian Murphy). Daí o nome original do filme, "Inception", que poderia ser traduzido como "inserção".
Além dessas temáticas, podem existir outras nas entrelinhas do filme, mas a que gostaria de explicitar nesse texto é como esse é uma parábola da experiência cinematográfica.
Pode ser que a ideia de Nolan tenha sido somente a de trabalhar personagens inserindo uma ideia na mente de uma vitima (Fisher no caso), mas, indo além-cinema, ele (Nolan) pode ter trabalhado com a hipótese de que essa inserção seja metalinguística e que, como uma vez disse Orson Welles, "O cinema não tem fronteiras e nem limites: é um fluxo constante de sonhos". [1]
O próprio cinema como inspiração
Quando uma pessoa escreve/cria uma história, seja de um livro, ou o roteiro de um filme, sempre parte de algo de sua realidade, fragmentos de sua vivência para construir a sua obra. Logicamente que com "A origem" não foi diferente. E uma das coisas que serviu de inspiração foi o próprio cinema.
O próprio Nolan estabelece em entrevista para a EW que essa analogia aconteceu organicamente [...]. Durante o processo de 10 anos para escrever a história, por instinto, ele usou como base a equipe que conhece mais profundamente: a que produz um filme. [2]
Assim sendo, cada personagem assume um arquétipo de um membro da produção cinematográfica. Além disso, o filme como um todo mostra alegoricamente como funciona a produção de um filme, desde a sua concepção, a pré-produção, a criação do roteiro, até a produção propriamente dita. Vamos ver com mais detalhes essa analogia em cada um dos personagens.
1- Dom Cobb (Leonardo DiCaprio): Extrator/Diretor
Cobb é um ladrão especializado em roubar segredos infiltrando-se nos sonhos das pessoas. Ele é o líder da equipe, aquele que escolhe com quem irá trabalhar e coordena as ações de cada membro durante a missão. De maneira similar, essa é a função de um diretor de cinema. É esse quem escolhe os rumos estéticos e artísticos de um filme. Seja em um projeto autoral, ou não é ele quem define os caminhos da produção e os meios utilizados para tal. Tanto que, geralmente, quando um filme vai bem, ou mal, é o diretor quem é responsabilizado por seu sucesso, ou fracasso.
Percebe-se alguma semelhança física também entre o diretor e o ator. Se foi algo intencional na escolha do elenco ou não, não posso afirmar, mas desconfio que foi de propósito.
2- Arthur (Joseph Gordon-Levitt): Armador//Produtor
O "braço direito" nas missões e o responsável em fazer com que tudo saia conforme o planejado, pesquisando tudo sobre o alvo e se certificando de todos os detalhes do plano. Podemos associar esse personagem com a figura de um produtor de cinema, aquele que é responsável pela parte mais burocrática do filme, administrando a parte financeira, para evitar que as ideias do diretor extrapolem o orçamento.
O produtor de cinema normalmente é quem tem o domínio sobre a obra, desde sua concepção, até sua finalização. No Oscar, por exemplo, quando uma produção ganha o prêmio de melhor filme, quem vai receber a estatueta não é o diretor e sim o produtor.
3- Ariadne (Ellen Page): Arquiteta/Roteirista/Design de produção
Ariadne é uma estudante de arquitetura que é recrutada para construir os cenários nos sonhos. O nome da personagem foi retirado da mitologia grega. Particularmente, eu a identifico como uma espécie de roteirista, alguém que vai elaborar os rumos que a trama irá tomar e os caminhos por onde os personagens irão seguir. Isso também porque a intenção inicial de Cobb era a de que ela não iria participar diretamente da missão, sua função era apenas ajudar no "roteiro" da invasão a mente de Fisher.
No entanto, pesquisando um pouco, vi que ela pode ser uma espécie de design de produção, visto que ela é a responsável propriamente dita pela construção das arquiteturas dentro dos sonhos. "É dele [do Design de produção] a responsabilidade de materializar as ideias e conceitos quase abstratos do roteiro, fazendo com que as ideias do diretor sejam representadas fisicamente" [3].
4- Eames (Tom Hardy): Falsificador/Ator
Associado de Cobb que tem a habilidade de assumir outras formas nos sonhos, geralmente pessoas próximas do alvo, com o intuito de extrair informações valiosas para a equipe, no caso da missão especifica com Fisher, para poder inserir a ideia no subconsciente. Como é de se imaginar, um filme precisa de atores e Eames desempenha bem essa função aqui. Ele se passa por Browning, tio de Fisher, para tentar descobrir mais da relação dele com o pai.
5- Yusuf (Dileep Rao): Químico/Departamentos técnicos
A função de Yusuf é criar compostos químicos que possam sustentar as várias camadas de sonhos. A associação que podemos fazer desse personagem seria com a do responsável pelos efeitos visuais e especiais de um filme.
6- Saito (Ken Watanabe): "Turista"/Produtor-executivo
Saito é o concorrente das empresas de Fisher pai e precisa que Fisher júnior desmonte o império do pai. Ele é quem contrata Cobb e dá todo o suporte financeiro para que a missão aconteça. Em dado momento ele diz que vai participar da missão pois precisa saber que seu investimento foi bem feito. Essa é praticamente a descrição exata de um produtor executivo. Em geral é ele quem tem o domínio da obra original, no caso de adaptações (vide o Stan Lee, por exemplo), ou é quem financia a maior parte do projeto.
7- Robert Fischer (Cillian Murphy): Alvo/Público
O herdeiro da corporação Fisher e o alvo da equipe. A analogia que temos aqui é a do público. Sim o diretor quer implantar uma ideia em nossa mente. Mas ela precisa ser autogerada.
O cinema tem um pouco dessa intenção, de querer fazer uma "inserção" em nossa mente. Como no próprio filme os personagens dizem, ela precisa ser profunda e simples. Filmes complexos e inesquecíveis, podem muito bem ter premissas simples e fáceis de serem explicadas.
8- Mal (Marion Cottilard): "sombra"/A visões artísticas do próprio diretor
Deixei essa personagem para o final, porque tinha minhas dúvidas sobre a analogia que ela estaria representando. Mal é a projeção que Cobb faz da falecida esposa em sua mente. No entanto, ela sempre sabota as missões, motivo do qual ele tem receio de ir para essa missão a priori e o motivo de Ariadne temer pela segurança dos demais membros da equipe.
Mal representa nessa grande analogia a visão artística do diretor/criador. Aquela parte que não quer ceder ao público. É aquele dilema que todo artista tem que fazer o que acha ser o melhor, a projeção do seus próprios sonhos.
Não acorde antes do tempo
Essa reflexão é bem mais profunda e por ir bem mais longe. Algo que é importante salientar é como os créditos reforçam a ideia de que o próprio filme em si é um sonho. Poucos são os que percebem isso, pois a maior parte do público sai no momento em que os créditos começam a subir (uma tremenda falta de educação com as demais pessoas que também trabalharam no filme). Conforme os créditos vão acabando, a música "Non, Je ne regrette rien", da cantora francesa Edith Piaf (que foi interpretada pela própria Marion Cotillard no filme "Piaf - um hino ao amor", de 2007), da mesma maneira que toca quando anuncia aos personagens que o sonho está prestes a acabar. Sendo nós, o público, o "alvo", significa que estamos acordando antes do tempo quando saímos do filme antes do seu encerramento propriamente dito: o final dos créditos.
O filme, ou o cinema em geral, é isso: um grande sonho. Basicamente uma grande alegoria de como essas obras são produzidas e como nós como espectadores interagimos com essas obras.
Portanto, "A Origem" é um grande exercício metalinguístico de criação de histórias. Um autor, Nolan, criando personagens que estudam outro personagem como se estuda um protagonista. O sucesso na transformação desse protagonista pelos personagens é o sucesso da transformação do público pelo autor. [2]
Citações:
[1] https://canaltech.com.br/cinema/critica-a-origem-162613/
[2] http://alemdoroteiro.com/2018/08/08/a-origem-e-a-metafora-para-criacao-de-personagens/
[3] https://www.institutodecinema.com.br/mais/conteudo/profissionais-do-cinema-designer-de-producao
Referências:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Christopher_Nolan
https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Origem
https://cinepop.com.br/curiosidades-11-anos-de-a-origem-elogiado-sci-fi-dirigido-por-christopher-nolan-303947/?amp
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